T1T45 Um texto sobre nada
A tópica da crise de criatividade é um dos assuntos que a maioria das pessoas que escreve tem interesse. Fala-se em inspiração. Fala-se, também, em compromisso. “Nulla dies sine linea”, expressão latina localizada em Plínio, o Velho, originalmente, pensada para o desenho ou pintura, que o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (como muitos outros pensadores) adaptou para a escrita: nem um dia sem uma linha! Escrever, apesar e tudo.
Várias imagens sobre a escrita, como prática cultural, são conhecidas, desde a sua invenção. A solenidade desse gesto, no mundo antigo. O cotidiano tedioso dos copistas, no mundo medieval. As traduções e descrições, da época moderna, sucedidas da obrigação de escrever, desde a vulgarização completa da imprensa, sobretudo, a partir do século XIX, com os primeiros projetos de alfabetização em massa de populações. Sim, para que tantas pessoas passassem a ganhar dinheiro escrevendo, foi necessário produzir um mundo com mais leitores. Quem lê tanta notícia? Bela indagação de Caetano Veloso. Mal sabia ele o que os viria, no século XXI, com as revistas de celebridades e as redes sociais…
O drama de um autor que deve um livro à editora que lhe antecipou o pagamento. A ansiedade de quem precisa escrever uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado para, assim, cumprir prazos acadêmicos e receber títulos. A crise de alguém que precisa ocupar com palavras um espaço no jornal, na revista ou no site para justificar o seu salário. A obrigação de dizer, de finalizar, de expressar alguma coisa. Ando pensando muito nisso. Sobre o quanto somos obrigados a nos comunicar. Ultimamente, só gosto, de verdade, da comunicação que me é espontânea. Contudo, não há muito espaço para a espontaneidade no mundo atual.
Somente consegui me expressar por palavras escritas sem "sofrimento" depois de muitos anos de psicanálise. A segurança apareceu à medida em que fui decupando as neuroses. Ao comentar com minha analista sobre este aplicativo aqui, chamado substack, ela respondeu algo tão simples quanto genial: disse que, finalmente, eu estava descobrindo - ou redescobrindo - que escrever pode também ser, simplesmente, uma outra maneira de falar, dizer algo ou alguma coisa. A maior revolução da minha vida foi descobrir que eu podia dizer algo, depois de anos, anos e mais anos de silenciamento. Nasci de novo.
Cresci lendo pessoas que são pagas para escrever comentarem sobre a crise de ter de dizer algo, mesmo quando nada parece pedir para ser dito. Colunistas de jornais. Roteiristas de TV. Professores universitários. São os famosos “ossos do ofício”. Conheci muita gente chata que dizia que, se não fosse para escrever algo realmente importante, o melhor era nem começar. Para essas pessoas, há sempre o sacrifício, o esforço transcendental, a posteridade envolvida na atitude banal de colocar algo no espaço em branco. É uma bela desculpa para não fazer e, por vezes, ser consumido pela neurose. O tanto que já chorei ao pôr no papel algumas frases. Neurose por neurose, prefiro a verdade do meu corpo.
Falando em neuroses, lembrei de “Seinfeld”, a dita “série sobre o nada”. Não sei se ela já foi “cancelada”, como boa parte das produções da década de 1990. Era uma série sobre o cotidiano e sobre o hilário de seu vazio. Era leve. Apesar disso, deve ter sido mesmo cancelada. A impressão que tenho é que, praticamente, tudo o que foi produzido naquela década não é bem aceito por boa parte das pessoas nascidas no século XXI. Às vezes, isso é bom, às vezes, ruim. Se nem o que já passou há décadas pode ser mencionado, considerado, analisado, na inteireza de uma época que passou, como vamos continuar a produzir narrativas? Não vamos mais encadear temporalidades? Não vamos mais contrapor o ontem ao hoje, o hoje ao amanhã? Sei lá. Hoje eu não tinha nada a dizer.

