T1T38 O trágico da vida
Aproveitei o final de semana e assisti a mais um episódio da última temporada de Black Mirror, algo que estava me devendo desde que ela saiu, no mês de abril, sem provocar grande repercussão. Trata-se do episódio “Bête Noire”. A história, realmente, não é das mais criativas, mas prende a atenção e tem um aspecto de interesse à análise de historiadores e psicanalistas.
O enredo da história gira em torno do reencontro entre Maria e Verity. A primeira trabalha em uma empresa de chocolates e, um dia, não mais que de repente, a segunda aparece como participante em um dos grupos de testes para eleição de novos sabores. O que Maria tem na lembrança é o fato de que Verity foi vítima de boatos referentes a supostas práticas sexuais com um professor, o que a teria transformado uma pessoa estranha e reclusa. No entanto, a aproximação com Verity passou a tornar a vida de Maria repleta de situações inexplicáveis e sem sentido, como se a realidade estivesse mudando a cada momento.
A partir de agora virá o spoiler, é preciso dizer, caso alguém se incomode com eles (embora creia que, passados quase dois meses da estreia de uma temporada de uma série como essa, esse aviso nem seja importante, mas fica aqui a prudência). Por trás das situações absurdas que fazem com que Maria questione sua sanidade estava o fato de que Verity, que era excelente estudante, desenvolveu um computador quântico capaz de alterar a realidade mudando os acontecimentos do passado e do futuro. É com ele que ela passa a se vingar de todos aqueles que suspeita terem participado da fofoca que destruiu sua vida social e imagem pública ainda na época de estudante.
O mais interessante é a brincadeira com o tempo que o episódio traz à luz e seus efeitos sobre nossos pobres espíritos presos em corpos perecíveis. Na cena final do episódio, Verity revela à Maria que, mesmo com o poder de alterar os acontecimentos do passado, fazendo desaparecer da memória coletiva a humilhação que sofreu, o fato é que ela continua infeliz, pois ela sabe que aconteceu. O corpo dela guarda essa verdade incontornável. Mesmo podendo apagar do mundo exterior a ela o trauma que lhe foi imposto, o fato é que em seu mundo interior aquilo está gravado para sempre. É o trágico da vida. Uma vez acontecido, já era. Se não aconteceu no tempo certo, já era, também. Não há reparação para tudo. Nem para tudo que aconteceu, nem para tudo que deixou de acontecer.
É muito interessante a discussão que o episódio levanta, sobretudo, por nos pôr a pensar sobre os limites e possibilidades do trabalho coletivo com as lembranças dos acontecimentos públicos e suas articulações com as experiências privadas. Quais os limites das reparações históricas? Até onde é possível evitar que determinados acontecimentos se desenvolvam para não repetirmos traumas inexoráveis a sujeitos e instituições? O que está em questão é um debate ético. Diz respeito a sermos criteriosos no sentido de tentarmos conhecer os limites dos outros e antever as consequências de nossas ações. Nós nunca sabemos, com exatidão, os limites dos demais seres humanos, por isso, estarmos atentos aos nossos pode ser uma boa orientação. É o conselho materno básico: não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você. Isso vale para instituições e para pessoas físicas.
Verity - verdade, em inglês - é capaz de determinar o que aconteceu e o que vai acontecer, porém, ainda assim, está dominada pelo passado marcado em sua consciência. O que aconteceu, aconteceu. Nem apagar da memória resolveria, pois ela já sabe, ela sentiu, ela viveu. Leite derramado. Caso perdido. Nem mesmo ser a dona da verdade garante a ela a paz. Todo o seu projeto justiceiro esbarra no fato de que o passado pode até ser recontado, porém, o trauma, esse permanece, tanto lá como no presente imediato. O trauma continua a ser trauma, para os responsáveis e para as vítimas, tenham ciência disso ou não. Em última instância, é da ordem do impossível esperar a plenitude da justa reparação e da devida punição. Diante disso, no trágico da vida, Maria - mesmo nome da mãe de Jesus Cristo - torna-se uma imperatriz universal, enquanto a verdade morre.

